Entrevista Leonardo Boff: "Felicidade é um conceito manipulado"

Leonardo Boff é um homem de fé. Acredita em Deus, nos ensinamentos de Jesus e na possibilidade de a religião ajudar as nossas vidas. Teólogo, Boff acredita também que a desigualdade social é um dos grandes males a ser combatido no Brasil – e baseia seu trabalho nessa crença. Depois de publicar alguns livros que desagradaram ao Vaticano, acabou levado à Sagrada Congregação para a Defesa das Fé, a antiga Inquisição, no qual foi interrogado pelo ex-papa Joseph Ratzinger, e sentado na mesma cadeira em que Galileu Galilei foi julgado. Boff acabou condenado ao silêncio, e se afastou da profissão de padre. Hoje, defende uma Igreja mais livre: com o fim do celibato obrigatório para padres e a liberdade de expressão. Além de todos esses assunto, nesta entrevista Leonardo Boff também comenta sua noção de felicidade. 

A fé é um caminho para a felicidade? Como a religião pode deixar alguém mais feliz?
A fé liga a pessoa à fonte originária de todos os seres, a Deus. Ele está continuamente mantendo e sustentando a sua criação e a cada um de nós. Sem isso voltaríamos ao nada. Nossa existência é um milagre cada dia. Sentir-se na palma da mão de Deus produz segurança e paz. É estar ligado a todas as coisas penetradas e sustentadas pelo Criador.

Qual é, na sua opinião, a mensagem mais bonita do catolicismo em relação à felicidade?
A melhor forma de ser feliz é procurar continuamente fazer os outros felizes.

O sr. teve discordâncias com o Vaticano e acabou se afastando da função de padre por causa de textos que escreveu. O sr. acha que a liberdade – de pensamento, de expressão, de manifestação – é essencial para alguém ser feliz?
A felicidade supõe você poder ser inteiro, dizer o que pensa, viver conforme sua visão de mundo. Se isso é tolhido, fere algo da essência humana, pois fomos criados com liberdade. Mesmo sob ferros ninguém deixa de ser livre e poder pensar, pelo menos, ou sonhar com a liberdade.

O sr. já declarou ser contra o celibato obrigatório dos padres. Por que? Qual o papel que o amor pode ter nas realização pessoal de alguém?
Eu sou contra o celibato obrigatório para aqueles que querem ser padres. Sou a favor do celibato optativo. Deus criou o homem e a mulher como sua imagem e semelhança. Há dimensões de Deus que somente a mulher representa. O celibato obriga o padre a se privar de um conhecimento maior de Deus. Priva o padre de uma experiência fundamental, que é o amor que se expressa tambem – embora não exclusivamente – pela intimidade sexual. A convivência de dois diferentes enriquece a ambos, limam suas pontas, crescem juntos e fazem uma experiência de humanidade mais completa. Nisso, a Igreja tradicional é cruel e desumana. Sem falar que um celibato mal integrado facilita o aparecimento da pedofilia, da obsesssão sexual e do autoritarismo. Onde há poder mesmo religioso não vinga o amor e onde há amor tudo desabrocha e abre para a felicidade.

É comum que pessoas busquem a religião em momentos de dor ou profunda infelicidade. Isso é válido. O sr. fica satisfeito com as respostas que o catolicismo pode dar nessas horas?
O ser humano é vulnerável. Não há filosofia ou teologia que deem as razões do nosso sofrimento, de nossas frustrações, das tragédias cotidianas e da morte. A única instância que pode consolar aquela que fala de Deus como Bom Pastor, do salmo 23, e que lhe diz: “mesmo passando pelo vale da morte, eu estou contigo”. Muitos judeus entravam nas câmaras de gás cantando esse salmo. Nessa entrega o ser humano encontra paz mesmo sem entender as razões últimas da realidade. Mas se entrega a um Maior que sabe de nossos caminhos e é Senhor de nossos destinos.

A Igreja Católica é cheia de regras e hierarquias: não aceita mulheres no clero, nem os homossexuais, nem o uso de preservativos. Você acha que todas essas regras interferem na felicidade? Como a religião deveria interferir na vida das pessoas?
Devemos fazer uma distinção: entre a religião católica e cristã e a tradição de Jesus. A religião é coisa que homens construíram, tomando elementos de Jesus. Mas as doutrinas, as normas éticas e os ritos são construções nossas, da cultura mediterrânea. Como toda instituição ela possui critérios de inclusão e de exclusão. A tradição de Jesus, aquele que andou entre nós, se opos à religião da época, em nome da liberdade, do amor incondicional, do encontro e da compaixão não conhece exclusões. É um caminho espiritual oferecido a todos, que pode assumir muitas formas. Jesus não quis criar pessoas piedosas ligadas a uma determinada religião. Quis pessoas que fossem ternas, fraternas, amorosas, sensíveis aos outros e especialmente aos mais invisíveis que são os pobres e marginalizados. O Papa Francisco ressuscitou a tradição de Jesus. É essa que deve orientar a nossa vida, e menos a religião cristã. A frase principal de Jesus que está no evangelho de São João é essa: “Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”. A religião cristã manda muita gente embora. O Papa Francisco diz que a Igreja é de todos e para todos especialmente para aqueles que se sentem pecadores e vulneráveies. Ela é como um hospital de campanha: cura as feridas de todos. Só depois vai perguntar se está bem casado ou não.

O sr. acha que, atualmente, a Igreja Católica tem sido um bom caminho para a felicidade?
Se a Igreja Católica ajudar a criar espiritualidade e nos abrir à tradição de Jesus e não quiser atrair fregueses fazendo proselitimo, é um bom caminho para sermos felizes. Basta ver a felicidade de um São Francisco de Assis, de um Dom Helder, de uma Madre Tereza de Calcutá ou da irmã Dulce que atendia os pobres de Salvador e a felicidade do Papa Francisco cuja primeiro documento oficial leva este nome: “A alegria do Evangelho”. Essas pessoas estavam dentro da Igreja mas viviam os valores da tradição de Jesus.

O sr. fala muito da importância das questões sociais na religião. Em que momento essas questões entraram na sua vida? E por que as considera fundamentais?
Sou teólogo. Desde cedo, em 1970, me dei conta de que, diante da pobreza generalizada, a religião deveria ajudar a libertar as pessoas desta situação desumana. A maioria é cristã e pobre. A religião servia de resignação e acomodação na esperança de ganhar a felicidade na vida eterna. Nosso esforço foi fazer entender que o cristianismo é por essência revolucionário. É herdeiro de Jesus, que foi difamado, preso, torturado e pregado na cruz. Sua condenação foi consequência de sua prática de defesa dos pobres e contra a religião ritualística que oprimia. Então com o método Paulo Freire conseguimos fazer passar essa compreensão para as classes oprimidas. Dai nasceram as comunidades eclesiais de base, o movimento dos sem terra, dos sem teto, dos meninos e meninas de rua, das mulheres oprimidas e a Teologia da Libertação. Todos esses movimentos vinham sob o signo da libertação. O Papa Francisco vem deste tipo de compreensão e por isso insiste na opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da justiça social.

Do ponto de vista social, atualmente no Brasil, quais são os maiores empecilhos para que todos possam se sentir satisfeitos?
Temos uma carga pesada sobre nossos ombros: séculos de colonialismo que nos fez dependentes de poderes de fora do Brasil, séculos de escravidão que submeteu e humihou milhões de brasileiros e que criou uma mentalidade de esperar sempre as coisas do patrão, de cima. As elites se aproveitam deste caldo cultural para manter seus privilégios. São 5 mil famílias que controlam 43% de toda riqueza brasileira. Essa não é só uma desigualdade social, é uma verdadeira injustiça que clama aos céus. A felicidade das elites vem carregada de má consciência. Eu teria vergonha de ser rico neste pais sabendo que há tantos pobres mas periferias passando as maiores necessidades.

Estudos mostram que o dinheiro só é decisivo para tornar alguém feliz até o ponto em que tira a pessoa da necessidade – o momento em que ela tem algo para comer, um lugar onde morar e possa ir ao médico. Depois disso, o dinheiro não influi muito no grau de contentamento. Por que, na sua opinião, tantas pessoas confundem acúmulo de riqueza com felicidade?
Freud deu uma boa explicação a isso. As pessoas são vulneráveis, nem todos chegam a ser maduros, quer dizer, a ser pai e mãe de si mesmos. Vivem com medo, dependendo dos outros ou do que os outros dizem. Aí se agarram ao dinheiro com a ilusão que ele supre a sua carência. Um bem material jamais suprirá uma necessidade espiritual, porque a felicidade é coisa do coração, do espírito generoso e aberto a todos e a tudo. O segredo da felicidade é saber conviver com o lado sombrio e o lado luminoso da vida, realidades presentes em cada um de nós. Ser feliz é dar a hegemonia e o espaço maior ao lado luminoso e nunca querer recalcar o lado sombrio. Mas mantê-la sob controle, conviver com ele, tolerá-lo e impedir que se projete sobre os outros. Esse equilíbrio, nem sempre fácil, é o segredo da felicidade. Ela é como uma flor: bela mas frágil.

O sr. é feliz?
Não gosto desta categoria “felicidade”. Ela é por demais manipulada. Algum se sentem felizes com um pouco de cocaina ou um pedacinho de lexotan. Para mim o importante é se me sinto realizado com aquilo que faço e com quem convivo, se consigo enfrentar as dificuldades da vida e saber aprender delas e me propor cada dia de crescer um pouco em compreensão, em compaixão, em amor e acolhida da vida e das pessoas. O resultado desta caminhada é um discreto sabor de felicidade. Se não fizer esse percurso, a pessoa fará como a borboleta: voa de uma flor a outra e não para em nenhuma. Devemos encontrar o nosso lugar no conjunto dos seres e, como religioso diria, a nosso cantinho no designio do Mistério.

Fonte: http://www.gluckproject.com.br/entrevista-leonardo-boff-felicidade-e-conceito-manipulado/

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