Onde está Deus no sofrimento? - Ricardo Gondim

Por três anos baseei meus sermões no Evangelho de Lucas – o evangelho em que Jesus mais se aproxima do pobre. Ao me deparar com a narrativa do Gólgota, me senti constrangido. Depois de ler vários textos em que ele se mostrou empático com os sofredores, o Calvário era o seu momento de sofrimento. Eu, que nunca sofri horrores, me considerava indigno de tecer grandes argumentos sobre aquela hora tão difícil.

A narrativa da cruz, mesmo descontando a carga teológica que se construiu ao redor (some-se ainda a espetacularização hollywoodiana), permanece um dos mais pujantes relatos da história.

Jesus, o nazareno, foi assassinado sem motivo. A elite religiosa que dominava o templo judeu negociou com os poderes imperiais, incendiou uma pequena turba e conseguiu crucificá-lo. O filho de José não ameaçava o sólido império. Ele vinha da Galiléia, uma região remota e sem grande importância para Jerusalém, sede administrativa dos interesses romanos. Embora representasse uma esperança para os pobres, marginais e doentes, desde cedo mostrou que não estabeleceria um reino político. Sua mensagem procurava levar pessoas da periferia a encarnarem valores dignos e belos. Jesus inspirava escravos, destituídos e esquecidos. Para ele, uma vida alicerçada em solidariedade, justiça, compaixão e bondade representava a chegada do reino de Deus.

Depois de uma tortura cruel, comum no mundo antigo, penduraram Jesus. Sua execução aconteceu por volta do meio dia. Lucas conta que houve trevas entre a hora da morte e as três da tarde. Escuridão súbita, que significou mais que um coincidente ou providencial fenômeno da natureza. A noite fora de hora era o sinal do céu que os fariseus tanto pediram. Deus lhes respondeu. Mas, ao contrário do que imaginavam, o sinal do céu não autenticava o que eles faziam. A escuridão era metáfora. Deus simplesmente impedia que houvesse luz em tamanha sordidez; além de deixar um recado para as gerações futuras: aprendam, Deus nunca pactua com o perverso. A maldade faz a natureza nunca verdejar, as nuvens nunca embranquecerem, o sol nunca brilhar e Deus nunca se manifestar.

Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz, sobreviveu ao campo de concentração de Birkenau. Órfão e pobre, Wiesel foi condenado a padecer no mundo tenebroso que o nacionalismo alemão criou. Sua angústia foi profunda. Wiesel só aceitou publicar a sua autobiografia depois de permanecer mais de dez anos em silêncio. Ele não queria que rancor contaminasse sua versão sobre o holocausto.

No livro Night – “Noite” – Wiesel relata, com intensidade, sobre os meandros do campo de concentração – e sem esconder a sua crise de fé. A execução de dois adultos e uma criança o arrasaram – o momento mais dramático e dolorido do livro. Os três judeus foram amarrados em pé em cima de cadeiras. Os três pescoços, colocados no mesmo momento, dentro das cordas da forca. Wiesel continua:

Vida longa à liberdade, gritaram os dois adultos.
A criança continuou silenciosa.
Onde está Deus? Onde está ele, alguém perguntou atrás de mim.
Ao sinal do chefe do campo, as três cadeiras tombaram.
Total silêncio atravessou o campo. Sobre o horizonte, o sol se punha.
Então o desfile começou. Os dois adultos não estavam mais vivos. Suas línguas inchadas penduradas, tingidas de azul. Mas a terceira corda continuava se movendo; sendo tão leve, a criança continuava viva…
Por mais meia hora ele continuou lá, lutando entre a vida e a morte, morrendo em lenta agonia sob nossos olhos. E nós tivemos que olhá-lo de cheio em sua face.
Ele ainda estava vivo quando passei em frente dele. Sua língua continuava vermelha, seus olhos ainda não estavam vidrados.
Atrás de mim, escutei o mesmo homem perguntando:
Onde está Deus agora?
Onde está ele? Aqui está Ele – Ele está pendurado aqui na forca…
Naquela noite a sopa tinha gosto de cadáveres.

Não entendo o que me motivou a escrever sobre dois eventos tão crus – o Calvário e Birkenau.

Deve ser porque li a respeito de nove crianças que morreram na unidade neonatal do hospital público de Sergipe. Quem sabe, eu não consiga assimilar a morte de meninos e meninas palestinos. Talvez não me acostume com o descaso com que índios são tratados no Brasil. Como abandonei a ideia de que Deus vive em algum canto remoto do universo – ou em alguma dimensão sobrenatural – , repito: não existe morte necessária. Não há teleologia que mereça a tortura de uma criança. Para mim, o Deus calvinista que suja as mãos para conduzir a história, não passa de um ídolo. Não consigo conciliar a ideia de que Deus, numa espécie de loteria sádica, escolha abençoados e sofredores. Como conviver com uma divindade discriminatória que usa de critérios inquestionáveis para premiar e permitir suplícios. Insisto em acreditar que Deus não pactuou com os assassinos de Jesus, por isso, martelo: Deus se revolta contra a maldade e interpela homens e mulheres a resisti-la.

Onde está Deus?, perguntou algum judeu atrás de Wiesel. A resposta foi certa: Ele está pendurado aqui na forca. Deus é o Emanuel conosco. A metafísica não é necessária para afirmar onde Deus mora. Se posso intuir, ele ergueu seu tabernáculo perto do oprimido, nunca com o opressor. Deus acolhe o proscrito, jamais o poderoso. É amigo do injustiçado, não do injusto. Deus estava com o menino enforcado, não com o nazista que o matava. Sempre que a minha sopa tem gosto de cadáveres, a sopa de Deus também tem.

Soli Deo Gloria

Fonte: http://linkis.com/ricardogondim.com.br/7ENdQ

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