A verdade (não) é uma só - Alfredo Roberto Marins Junior

Jesus respondeu: Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, 
a fim de dar testemunho da verdade. 
Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade? 
 Jo 18,37b.38

Tenho o hábito de publicar, semanalmente, este artigo nas primeiras horas da quarta-feira. Este, entretanto, por um problema no provedor de serviços de Internet, acabou tendo sua publicação postergada em algumas horas.

Como todos nós temos, às vezes, problemas com a tecnologia, minha justificativa no atraso da publicação pode não ser aceitável, mas ao menos é cabível, já que ficar sem Internet vez por outra é uma experiência compartilhada.

Igualmente seria cabível se eu justificasse o atraso por conta da perda do arquivo do cartão de memória, aliada à falta de uma cópia de segurança, o que forçaria que o artigo fosse reescrito. Não exatamente aceitável, mas cabível.

A verossimilhança destas “desculpas” torna minha história muito próxima de uma verdade, o que de fato não é. Diferentemente teria sido se eu dissesse, por exemplo, que um ser mítico ou alienígena roubou-me o arquivo.

Se eu tivesse escrito isto, certamente você leitor, saberia que estou mentindo. Mas as histórias de falta de acesso à Internet ou a perda do arquivo não o fariam desconfiar da verdade. Até porque a verdade é uma concepção inatingível.

Narra uma lenda que a verdade foi enviada por uma divindade (não sei de qual mito) ao mundo na forma de um gigantesco espelho. Quando o espelho caiu na face da terra, estilhaçou-se em milhões de pedaços que se espalharam. 

As pessoas sabiam que o espelho era a verdade, mas não sabiam que ele tinha se partido na queda. Por conta disto, as que encontravam um dos pedaços, acreditavam ter nas mãos a verdade absoluta, quando na realidade possuíam apenas uma parte.

Ra, o criador do mundo egípcio, tinha três filhas: Sekmeth (a deusa da vingança), Serket (que diariamente cegava a serpente Apep), e Maat, a deusa da justiça e do equilíbrio. 

Seu atributo era uma pena que trazia atada a uma faixa nos cabelos com a qual pesava as almas dos mortos que chegavam ao Salão de Julgamento. O coração do morto era colocado num prato da balança e a pena no prato oposto. 

Mas antes da pesagem, o morto deveria fazer uma confissão afirmando não ter sido ladrão, assassino, adúltero ou violento. Se os pratos ficassem em equilíbrio, a alma estava livre, mas se o coração fosse mais pesado, ele era devorado por Ammit.

Este processo ocorria na sala das Duas Justiças ou Duas Verdades. Um nome muito apropriado, pois ao contrário do que diz o ditado popular a verdade não é uma só. Da mais banal discussão familiar, ao mais inflamado debate político, cada um defende ferrenhamente seu ponto de vista por acreditar que ele representa a única e incontestável verdade.

Assim, a ideia de que a verdade é inatingível parte do princípio de que a descrição de um evento sempre será falha, porque tanto a linguagem quanto a memória são falhas.

A linguagem é falha porque sempre há a incompletude. Tudo o que é foi e é dito, pode ser dito de outra forma, pode ser distorcido, reestruturado ou desconstruído para ter outro significado. Além disto, há a interpretação individual. 

Você que chegou a este ponto do artigo pode ainda estar pensando em qual o verdadeiro motivo do atraso do artigo, já que confessei não ter havido falta de serviço de Internet coisa nenhuma. Pode estar se perguntando: “afinal de contas, qual o sentido disto tudo?”, ou tirando suas próprias conclusões do que leu até agora.

Igualmente a verdade é inatingível porque a memória é irreal. Pergunte a alguém que se acidentou como foi exatamente o momento do acidente. Ele (ou ela) não saberá dizer qual a verdade porque o cérebro apagou o trauma.

Assim, uma testemunha pode inconscientemente mentir, contando não o que aconteceu, mas o que sua memória reconstruiu a partir do ocorrido e que ela tomará por verdade. É mais ou menos como naquela discussão sem sentido em que uma das partes fica repetindo “eu não falei isso”, enquanto a outra replica a cada afirmação “falou sim!”.

É óbvio que esta discussão não chegará a lugar algum. O que não é óbvio é que cada um contempla uma verdade diferente, construída a partir de suas memórias e da linguagem. Por isso o consenso nunca chega e a discussão continuará eternamente pela falta de acesso à verdade fundamental.

E o motivo do atraso? Foi só para elaborar uma introdução mais consistente com o resto do artigo. Se eu não o atrasasse, não teria como inventar uma justificativa aparentemente verdadeira.

Será verdade?

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