O discurso - Alfredo Roberto Marins Junior

“Se prestares atenção no teu discurso, 
perceberás que ele é guiado pelos teus propósitos menos conscientes.”
George Eliot

Existem palavras cujos significados somente compreendemos pelo contexto. Um professor que lembra à sala que “Na última aula discutimos tal assunto” não emprega a palavra “última” com o mesmo significado do professor que diz que “Na última aula deste semestre, um trabalho deve ser entregue”. Ainda que escrita da mesma forma, a primeira dá a ideia de mais recente, enquanto que a segunda exprime um fim.

Outra palavra que causa certa estranheza é discurso. Dizer que a presidente fez um discurso não é o mesmo que dizer que um sujeito é definido pela posição que ele ocupa num discurso. Enquanto que a primeira utilização diz respeito a uma apresentação oratória a um público, o segundo conceito é mais complexo, pois segundo esta visão, o discurso é o lugar onde língua, história e ideologia se encontram.

Sugiro um exercício antes de continuarmos. No fim desta frase você encontrará uma palavra em negrito. Qual é a primeira coisa que você pensa ao ler? A palavra é: ÁGUA.
Esta palavra pode ter evocado em nossas mentes a imagem de um copo cheio de água, de uma garrafa de um litro de água na geladeira de uma padaria que vende um doce excelente, uma piscina, o Oceano Atlântico, chuva, as poças d’água que a chuva forma, enchentes, cachoeira, um lago no qual você nadava na sua infância, a hidrelétrica de Itaipu, a poluição do rio Tietê ou outra coisa qualquer.

Sendo a palavra a mesma, o motivo de tamanha divergência é o discurso. A palavra (língua) encontra a história particular de cada um (sede, caminhar na chuva ou nadar no lago) e é reforçada pela ideologia (preocupação com os recursos hídricos, poluição). Tudo isto leva a cada um de nós pensarmos em diferentes imagens acústicas para a mesma palavra.

E isto não se limita ao pensar. Os textos que alguém escreve são influenciados pelos autores que leu, pelas histórias que ele conhece, pelo conhecimento adquirido no aprendizado formal ou informal. A escolha desta ou de outra palavra, a seleção do que se diz e de como se diz, a partir de escolhas conscientes ou não, são todos elementos ideológicos discursivos.

E a mitologia, como uma construção humana também segue estas regras.

O ideal de beleza grega dominou não só o período helenístico (expressão cujo significado pode ser traduzido como "viver como os gregos" e que foi de 323 a.C. até 146 a.C.), mas retornou como ideal no Renascimento, a era da redescoberta e revalorização da cultura da antiguidade clássica. E outra vez, como ideal de um mundo idílico e clássico na arte nazista.

O discurso que descreve os deuses gregos é o da beleza. Homens viris, mulheres curvilíneas, formas perfeitas. Basta observar a estátua da Vênus de Milo, ou o termo “adônis” que indica um jovem belo em referência à beleza do heróis mítico Adônis.

Os conceitos que descrevem os deuses hindus não tem o mesmo discurso do mito grego. São divindades cheias de braços e mãos que carregam escudos, espadas, arcos, flechas, flores de lótus, artefatos místicos que invocam a espiritualidade, a contemplação e a meditação acima do mero recipiente que é o corpo físico.

E igualmente diferente é o discurso da mitologia egípcia, onde há um desfile de criaturas grotescas, híbridos de ser humano e outros animais. 

Hórus, por exemplo, tinha a cabeça de falcão por ter sido concebido enquanto Ísis, sua mãe, havia tomado a forma de uma ave. Anúbis, filho ilegítimo de Osíris e Néftis, tinha a cabeça de chacal. Toth, o deus da sabedoria, do aprendizado e do conhecimento, tinha a cabeça de íbis, uma ave com pernas e pescoço longo e bico comprido. 

Sobek era um deus com cabeça de crocodilo, Meretseguer era a deusa-serpente, Bastet a deusa-gato e Sekmet é uma deusa que esconde, por baixo do véu, uma cabeça de leão.
Formas híbridas estranhas à nossa percepção de beleza, mas nem por isto menos complexos, elaborados ou cheios de nuances que os deuses gregos. Apenas marcados por um discurso diferente do nosso.

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