Nossas verdades são só palpites - Rubem Alves

Símbolos que expressam nossos anseio 

Encontrar amigos é sempre uma alegria. Especialmente se fazia muito tempo que os amigos não se encontravam. Amigos se encontrando, não é preciso explicar. Amigos se entendem sem precisar falar.

Pois nos encontramos na semana passada, o Leonardo Boff, o Luiz Carlos Lisboa e eu. O Leonardo e eu já éramos amigos há muitos anos. Em razão de sofrermos, ambos, de uma doença incurável: uma relação de ódio e fascínio pela teologia. Essa doença dá grande coceira nas idéias, coceira que chega sangrar. Eu, de tradição protestante, ele de tradição católica. Mas sempre andamos juntos alegremente, jogando frescobol com palavras. Teologamos duetos, piano e violino, juntos e diferentes, sem confusão, sem separação, sempre em harmonia, de acordo com as definições do concílio de Calcedônia sobre as duas naturezas de Cristo. Concordamos em que Deus não entregou os seus negócios para serem administrados por uma instituição chamada igreja. 


Como Jesus mesmo disse, Deus faz sua chuva cair sobre maus e bons, e o sol brilhar sobre justos e injustos. A água da chuva, todo mundo sabe o que é. O calor do sol, todo mundo sabe o que é. A confusão sobre Deus – chuva e sol – começa quando religiões afirmam que prá se molhar na chuva e se aquecer ao sol é preciso ter idéias certas sobre a chuva e o sol, idéias que só elas têm, e que se chamam dogmas. Essas religiões pensam que conseguiram engaiolar Deus. Deus só existe dentro delas. Religiões são gaiolas vazias. Não. Não estão vazias. Dentro delas há um pássaro empalhado. Mas Deus é um pássaro em vôo... Há um ditado judeu que diz: “Os homens pensam. Deus ri.” Ele se ri das bobagens que pensamos sobre ele – ou ela, não estou bem certo. O mar também se riria de nós...O Luiz Carlos Lisboa, eu já era amigo dele antes de conhecê-lo pessoalmente. Eu li, faz muitos anos, o seu livro Nova Era. Li e percebi que, sem nunca nos termos visto, éramos amigos. Quis comprar outros exemplares para dar de presente aos meus filhos. Mas a edição estava esgotada. O remédio foi fazer cópias xerox. Tão sábio e tão poético que o li com o meu grupo de poesia. O que encanta nos seus textos é, em primeiro lugar, a sabedoria mansa. Depois, os textos são curtos, menos que uma página. Finalmente, a música da sua escritura. Kierkegaard dizia que a verdade mora não na letra do texto mas na música que existe nos interstícios das palavras. Fernando Pessoa também sabia disso. Escreveu a um poeta (talvez ele mesmo ): “... e a melodia que não havia se bem me lembro faz-me chorar...” Na folha de papel estavam as palavras do poema. Mas não eram elas que faziam chorar. O que fazia chorar não eram as palavras mas uma melodia que saia das entrelinhas... Todos os terapeutas deveriam prestar atenção nessa lição. Prestar menos atenção no que a pessoa está falando e mais na música que ele não sabe que está fazendo.Vou transcrever dois textos que se encontram no seu livro O som do silêncio, publicado pela VERUS: “Um brinquedo, uma roupa, a pequena cama – os objetos que cercam a vida de uma criança conservam a sua energia quando ela se ausenta para ir à escola ou viajar. Há naquelas coisas uma vibração que se percebe no ar. Aqueles que amam costumam também imantar tudo o que tocam, e assim deixam um rastro perfumado por onde passam.” “Ah, o desperdício de falar, quando há tanta coisa a ouvir de quem não tem nada a dizer. Às vezes somos como o grito de uma serraria, escondendo o solo perfeito de um violino. Só é preciso prestar atenção e ficar em silêncio, para escutar a música que vem do mundo. Nela estão as respostas que procuramos, e nela está a certeza de que todas as perguntas são fúteis quando somos felizes.’ Que lindo presente para uma pessoa querida! Quem dá um livro como esse está dizendo: “Acredito que você é uma pessoa inteligente e sensíve”.À noite estivemos na FNAC, para conversar com quem quisesse. Havia muita gente. Para começar, uma surpresa que não estava no programa. Entrou no palco o grupo “Serenata Brasileira”, em roupas dos anos vinte ou trinta, não sei bem. Eles cantam os antigos sucessos das tradicionais serenatas numa afinação absoluta. Eu estava assentado à mesa, de frente para o público. Tive dois prazeres: o da música e o dos rostos que eu via Todos sorriam. Sorrisos diferentes. O sorriso dos jovens era só sorriso. O sorriso dos velhos estava misturado com saudade. Teve gente que chorou. Eu, quase... Todo mundo ficou triste quando a música acabou. A música tem um poder de ligar as pessoas que as palavras não têm (exceto a dos poetas). E nós três teríamos de falar porque, se fôssemos cantar, sairia tudo desafinado, muito embora o poeta tenha dito que no peito dos desafinados também mora um coração...Como cantar nós não sabemos, por causa da desafinação, passamos a fazer o que sabemosr: pensar, conversar, rir. Que os temas fossem dados pelas perguntas do público! Ficou logo claro que todos estavam curiosos com o título do livro do Leonardo, Novas fronteiras da igreja. Especialmente porque, como se sabe, ele é um herege. Em outros tempos ele já teria sido queimado num edificante Auto de Fé, numa das fogueiras da Inquisição. Que ele é herege não é difamação minha. Foi ele mesmo que confessou publicamente, até com um certo sorriso... Contou-nos de um jantar de homenagem que lhe ofereceram Darci Ribeiro e Oscar Niemeyer, ambos ateus confessos, para celebrá-lo como o primeiro herege brasileiroO que é um herege? É uma pessoa que anda na direção contrária. É alguém que diz o que foi proibido dizer. O pecado dos hereges não é moral. Ninguém e herege por ser um assassino ou fornicador. Esses são pecados de que se pode arrepender, e que são resolvidos no confessionário. O pecado dos hereges, ao contrário, não é pecado de ação. É pecado de pensamento. E não há formas de se arrepender daquilo que se pensa. Ele pensa aquilo que é proibido pensar. Só há um jeito de curar um herege: queimando-o na fogueira.Pois o Leonardo, já há algum tempo, tem estado dizendo coisas proibidas. Por elas foi levado ao Santo Ofício e interrogado pelo guarda da fé, o Cardeal Ratzinger. O Leonardo diz, brincando: “Tive a honra de me assentar na mesma cadeira em que se assentou Galileu...” Galileu também foi herege por afirmar uma coisa proibida, que a terra não era o centro do universo. Ah! Como as religiões afirmam coisas confusas! Felizmente se arrependem delas, passados quinhentos anos... Outro herege famoso foi Jesus Cristo que andava pela Palestina negando aquilo que sempre tinha sido dito: “Ouvistes o que foi dito aos antigos, eu, porém, vos digo... A heresia do Leonardo tem a ver com aquilo que ele pensa sobre a igreja. Para ele Jesus jamais imaginou uma igreja hierárquica, burocrática, dotada de poder ( houve um período em que ela chegou a ter exércitos ) e que pretende ser a única detentora da verdade, a verdade inteira. Essa pretensão torna impossível o ecumenismo oficial. Porque se uma instituição possui a verdade toda, ela não precisa ouvir ninguém. Seria uma perigosa perda de tempo. O pensamento do outro só pode ser mentira. É o outro que tem de ouvi-la. Ela é “mater et magistra” – mãe e mestra. Para o Leonardo, ao contrário, a igreja é formada por todos aqueles que sonham o mesmo sonho, o sonho que está contido na poesia do Pai Nosso: um mundo de fraternidade, sem misérias, sem vinganças, sem violência.Perguntaram ao Luiz Carlos Lisboa – que ama o Rio de Janeiro, cidade mais linda não há – sobre essa estranha coincidência: o Rio de Janeiro é uma das cidades mais religiosas do Brasil e é a cidade mais violenta do Brasil. Qual é a relação que existe entre religião e violência? Ele lembrou que, na história do Ocidente, as religiões sempre estiveram ligadas à violência. Os maiores horrores já foram perpetrados por causa de dogmas religiosos. Agora mesmo, para justificar a guerra contra o Iraque, o presidente Bush declarou que conversava com Cristo todas as manhãs. A loucura tem fortes relações com a religião institucionalizada. Os loucos pensam que suas idéias são as idéias de Deus. Pensa-se que a violência criminal vai se resolver com a violência policial. Mas onde se encontram as raízes da violência? Elas não se encontram dentro de nós mesmos? A violência só vai ser resolvida quando os homens aprenderem a ser mansos. Mas isso exige uma transformação espiritual. Era assim que pensavam Jesus Cristo, São Francisco de Assis e Gandhi... Foi uma conversa gostosa, honesta, por vezes com um pouco de pimenta, que era logo eliminada com o humor.O que é necessário compreender é que ninguém tem a verdade. Nós só damos palpites. No momento em que os indivíduos compreenderem que suas verdades não passam de palpites eles ficam mais tolerantes. E é gostoso conversar mansamente, cada um ouvindo honestamente o que os outros tem a dizer.
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.

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